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TEXTO LIDO POR BOLSONARO EM LIVE NAS REDES SOCIAIS SOBRE VACINAS E AIDS NÃO É DA REVISTA EXAME

Para justificar a postura negacionista do presidente Jair Bolsonaro na live, em que espalhou uma associação inexistente entre as vacinas contra a covid-19 e a Aids, aliados agora tentam associar o relato falso a uma notícia da revista Exame, de outubro de 2020. Novamente, o argumento não se sustenta – é mentira que as vacinas possam causar a doença e, como esperado, a reportagem não informa nada disso.

Um dos que investiram nesse tipo de post foi o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). No Twitter, o segundo filho do presidente escreveu que “o meio de comunicação do bem chamado @exame divulga a informação e o atacado é quem leu sua matéria”, sugerindo que a revista teria sido a fonte da declaração de Bolsonaro.

Nesta segunda-feira, 25 de outubro, em uma entrevista para uma rádio do Mato Grosso do Sul, o próprio Bolsonaro culpou a imprensa. “Dois dias antes da minha live, ou melhor na segunda-feira, a revista Exame fez uma matéria sobre vacina e Aids”, disse o mandatário, errando o ano da reportagem. “Eu repeti essa matéria na minha live, e dois dias depois a revista Exame me acusa de ter feito fake news.”

Porém, no trecho da live em que coloca dúvidas sobre a segurança das vacinas contra a covid-19, Bolsonaro segurava uma folha que reproduzia um texto do Before It’s News, site conhecido por espalhar desinformação sobre vacinas e teorias da conspiração na internet. O boato depois foi abraçado por sites antivacina brasileiros, como Stylo Urbano e Coletividade Evolutiva.

A mentira espalhada por Bolsonaro

Na live, Bolsonaro lê o seguinte: “Relatórios oficiais do governo do Reino Unido sugerem que os totalmente vacinados — quem são os totalmente vacinados, aqueles depois da segunda dose, 15 dias depois — estão desenvolvendo a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (Aids) muito mais rápido do que o previsto”. E depois completa: “Não vou ler a matéria pra vocês aqui porque posso ter problemas com a minha live.”

O mesmo texto falso foi desmentido na semana passada pelo Fato ou Fake, núcleo de checagem do G1, pela agência Aos Fatos e pela AFP Checamos. Em resposta aos jornalistas, o Departamento de Saúde e Assistência Social do Reino Unido e o Public Health England disseram que nenhum relatório do governo britânico tinha essa conclusão e que o boato tinha se originado em site que propaga “fake news”.

O site suspeito de ter divulgado o boato primeiro se chama “The Exposé UK”. Os autores alteram documentos oficiais do governo britânico e inserem artificialmente uma coluna de dados, a que atribuem o termo “reforço ou degradação no sistema imunológico”.

O cálculo era totalmente equivocado: comparava a quantidade de casos de covid-19 em grupos de pessoas vacinadas e não vacinadas ao longo do tempo no País — o que em nada se relaciona com a Aids, doença causada por uma infecção pelo vírus HIV.

Especialistas apontam que nem mesmo a imunidade contra a covid-19 poderia ser aferida por essas taxas. Esse tipo de análise é feita por meio de estudos de laboratório, que medem os níveis de anticorpos e de células relacionadas ao processo de defesa, como explicou ao G1 a imunologista e professora da USP Letícia Sarturi.

Além disso, a chance de pegar covid-19 é comprovadamente menor em vacinados do que em não vacinados, assim como o risco de hospitalização e morte, conforme demonstram os estudos que resultaram na aprovação das vacinas. A quantidade total de casos se torna maior com o tempo no primeiro grupo em alguns locais por uma questão de lógica: quando a maior parte da população já está imunizada, mesmo uma probabilidade reduzida pode se tornar mais frequente.

O que diz a matéria da ‘Exame’

A reportagem da revista Exame foi publicada em 20 de outubro de 2020 e atualizada nesta segunda-feira, 25 de outubro de 2021, incluindo o termo “Out/20” e um ponto de interrogação no título. A sinalização é feita para deixar claro que o conteúdo é antigo e não permite tirar conclusões.

Diferentemente do que sugere o vereador Carlos Bolsonaro e outros influenciadores bolsonaristas, a notícia não sustenta a tese infundada do presidente. O mesmo vale para a Science, que também abordou o assunto na época.

Na época, as revistas noticiaram um artigo da revista The Lancet que levantava a possibilidade de vacinas contra a covid-19 que utilizam um vetor específico — o adenovírus do número 5 (Ad5) — de aumentarem o risco de contrair o vírus da Aids caso haja de fato uma exposição ao HIV. Elas não afirmam em nenhum momento que os imunizantes poderiam causar Aids.

Rafael Larocca, imunologista que passou anos pesquisando sobre vacinas contra o HIV e outras doenças no Centro de Virologia e Pesquisa em Vacinas da Escola de Medicina de Harvard, afirma que a possibilidade de um imunizante causar Aids é nula. “É surreal, isso não existe. Seja para covid-19, febre amarela, gripe, sarampo ou qualquer doença, o intuito de qualquer vacina é induzir uma resposta imunológica para proteger da infecção por aquele vírus ou bactéria.”

A tecnologia de vetor viral consiste em adicionar informações genéticas do vírus da covid-19 (Sars-Cov-2) em um outro vírus comum, um adenovírus, que geralmente causa resfriados e sintomas semelhantes aos da gripe. Nenhuma das vacinas atualmente em uso no Brasil utilizam o Ad5, mas esse é o caso da segunda dose da vacina russa Sputnik V e da chinesa CanSino. A vacina de Oxford/Astrazeneca e da Janssen também utilizam vetores virais, mas os adenovírus são outros — ChAd e Ad26.

A publicação da Lancet era uma “correspondência”

De acordo com a revista, esse tipo de artigo é uma carta enviada para os editores e representa “reflexões dos nossos leitores sobre conteúdos publicados nos jornais da Lancet ou sobre outros assuntos de interesse”. A ideia das cartas é suscitar debates relevantes na comunidade científica, mas elas não costumam ter o impacto de um estudo devidamente revisado por pares.

A autoria é de quatro pesquisadores dos Estados Unidos: Susan Buchbinder, Juliana McElrath, Carl Dieffenbach e Lawrence Corey. Eles escrevem que, durante os testes de uma vacina contra o HIV que tinha o Ad5, homens vacinados tiveram um risco maior de infecção do que o grupo controle. Os resultados daquela pesquisa foram publicados na Lancet por estes e outros cientistas, em 2008. Mas, para além desse alerta, nenhuma informação nova e específica sobre as vacinas contra a covid-19 aparece na mensagem.

Larocca explica que ainda não existe uma resposta definitiva para o assunto, muito menos em relação a vacinas com Ad5 contra a covid-19, Sputnik V e CanSino. “Acredita-se que o adenovírus 5 induza nas células CD4 um fenótipo, elas começam a expressar alguns receptores que auxiliariam na entrada do HIV”, relata o imunologista. “Assim, caso a pessoa entre em contato com alguém que tenha o HIV — por meio de sexo, compartilhamento de seringas, uso de injetáveis, etc. — ela poderia ter uma maior suscetibilidade de adquirir o vírus e desenvolver a doença. Mas tudo isso tem que ser muito bem estudado e elaborado.”

Existem evidências em pesquisas de laboratório do próprio grupo de Harvard, que comparou a resposta induzida pelo Ad5 com a do Ad26 nessas células-alvo do HIV, e também outros trabalhos relevantes, analisando o perfil dessas células em pessoas em contato com o Ad5, por exemplo. Larocca desconhece, no entanto, estudos científicos mostrando que alguma vacina contra a covid-19 gere esse tipo de efeito até o momento.

Em 23 de outubro, a Namíbia decidiu negar temporariamente o pedido de aprovação emergencial da Sputnik V “por excesso de cautela” em relação aos estudos que relacionam o Ad5 a um eventual maior risco de contrair HIV quando exposto a esse vírus. O Ministério da Saúde do país africano disse ter levado em consideração “preocupações” levantadas pelo órgão regulatório da vizinha África do Sul. Os dois estão entre os países com maior prevalência de HIV/Aids na população. Essa notícia também vem sendo distorcida por governistas nas redes para colocar em dúvida a segurança das vacinas no Brasil.

Reação

O presidente Jair Bolsonaro recebeu críticas de especialistas e mobilização de políticos após o mais recente episódio de ataque contra as vacinas, como mostrou o Estadão no sábado, dia 23. A live foi apagada do seu perfil no Facebook e no Instagram na noite de domingo, 24, mas a gravação continua disponível no YouTube. (Atualização 26/10: duas horas após a publicação desta checagem, o Youtube também derrubou a live e suspendeu novas publicações do canal de Bolsonaro por sete dias.)

Conteúdo: Estadão

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