O retorno: Jorge Aragão vence o câncer e celebra a vida com show e novos projetos
Conteúdo: Jornal O Globo
O sambista Jorge Aragão, de 74 anos, está de volta aos palcos após vencer um linfoma, um tipo de câncer que afeta o sistema linfático. Ele fez a última sessão de quimioterapia na quarta-feira passada e recebeu a boa notícia dos médicos de que a doença foi superada.
— Eu tenho o maior medo (de morrer) — conta. — Quando recebi a notícia do linfoma, para mim tinha acabado a vida. Não conseguia pensar em ninguém que tivesse superado um câncer. Só me lembrava dos amigos que tinham ido embora. Foi uma sentença, mais uma.
Aragão já enfrentou outros problemas de saúde ao longo da vida. Ele é cardiopata e tem 28 stents (pequenos tubos que impedem o entupimento das artérias). Em 2020, foi parar na UTI por causa da Covid-19. Andar no fio da navalha, diz ele, é rotina.
— Fico escutando as pessoas dizerem: “é tão bom olhar para o céu, tão bom ver a natureza, beber, comer”. Essas frases quase corriqueiras para os outros não são corriqueiras para mim. O peso delas é muito maior — afirma.
O cantor e compositor não se deixa abater e segue trabalhando em diversos projetos. No próximo sábado, ele se apresentará na Jeunesse Arena, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. Ao longo de novembro, mês da consciência negra, lançará nas plataformas singles de seu Projeto Identidade, no qual reinterpreta sucessos seus ao lado de rappers. Em janeiro, planeja lançar um álbum de inéditas. E, em março, fará um show que será filmado para marcar seus 75 anos.
Aragão é um dos maiores nomes do samba, com uma carreira de mais de 50 anos e dezenas de sucessos gravados por ele e por outros artistas. Ele é autor de clássicos como “Vou festejar”, “Coisinha do pai”, “Coisa de pele”, “Papel de pão”, “Moleque atrevido”, “Tendência”, “Enredo do meu samba”, “Do fundo do nosso quintal”, “Resto de esperança” e o tema da Globeleza.
Ele diz que sua essência é a composição, não a interpretação. — Sou compositor, não sou cantor. A minha essência é o que eu escrevo, escrevi e ainda vou escrever. É o que me move. Nunca gostei da minha voz. Agora estou mais acostumado, mas não suportava me ouvir na secretária eletrônica.
Ele também afirma que não é ativista, mas reconhece que suas músicas têm um forte apelo social e racial. Uma delas, “Identidade”, se tornou um hino da população negra. — Não sou ativista, não nasci para ser representante da voz negra. Sem perceber, fiz músicas que foram para esse lado — aponta Aragão, para quem o racismo não está cedendo no país. — Nada vai mudar se não tiver no topo da cadeia uma representação negra. Não é que vá mudar o mundo, mas vai ter essa ótica de colocar as coisas no devido lugar. Senão, vai ser assim: põe um pretinho aqui, dá um pedacinho para o outro.
O Projeto Identidade é uma forma de Aragão dialogar com a nova geração do rap, que ele admira pela criatividade e pela rapidez. Ele convidou nomes como Xamã, Emicida, Djonga, Marcelo D2 e L7nnon para cantarem com ele sucessos de sua autoria, com a produção de Dalto Max. O primeiro single, lançado em outubro, foi “Eu e você sempre”, com a participação de Xamã, que improvisou um rap na música.
— Levo dois anos para fazer uma música. Esses meninos vão para um canto, pegam o celular e saem cantando na mesma hora. Confiam tanto naquilo que fazem que vão embora —diz admirado, para depois brincar. — Tenho certeza de que não se lembram depois do que fizeram.
Aragão conta que não tinha pretensão de ser sambista, nem mesmo músico. Ele aprendeu violão e guitarra sozinho, tocando em bandas de baile na juventude. Quando serviu na Aeronáutica, pediu para ser corneteiro, mas confessa que era o pior de todos. Foi lá que conheceu seu primeiro parceiro, Jotabê, com quem compôs “Malandro”, gravada por Elza Soares em 1976 e que se tornou um clássico do samba.
Depois, ele se aproximou do Cacique de Ramos, onde se destacou como violonista e compositor. Foi lá que conheceu Beth Carvalho, que gravou várias de suas músicas, como “Vou festejar”, que é cantada até hoje em diversas ocasiões. Aragão diz que se sente um privilegiado por ter tantos sucessos e parceiros de talento, mas que não se considera um representante do samba.
— Não carrego a representatividade do samba. Não vim do meio, não fui de escola de samba, não fui de favela, de morro.
Aragão também fala de sua fé, que o ajudou a superar os momentos difíceis. Ele diz que não segue nenhuma religião, mas que acredita em Deus e lê a Bíblia. Ele critica a violência e a intolerância que ocorrem em nome da religião e diz que prefere se expressar pela música.
— Como a religião é tão forte e acontece isso agora (o conflito entre Israel e Hamas)? O ser humano mata desse jeito em nome de defesa e também de religião. Não tenho competência para debater isso com os outros. Melhor compor — acredita.
Aragão recebeu o apoio e a torcida de seus amigos e fãs durante o tratamento do linfoma. Um deles foi Zeca Pagodinho, que ligava todos os dias para uma de suas filhas, Tânia, e pedia para fazerem uma corrente em prol da recuperação. Aragão agradece o carinho e diz que está pronto para voltar a cantar e a compor.
— Parece que Deus me põe no lugar certo na hora certa. Tenho parceiros de talento e não consigo alcançar o pé deles. Não entendo por que eles também não chegam (aonde ele chegou). Fico com vergonha. Parece que estou roubando um lugar — diz, com humildade.
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