Diretora há 20 anos de uma escola pública com alunos da pré-escola ao 5º ano, na zona rural do Distrito Federal, a educadora Socorro Xavier Ritter, 52, não titubeia ao ser questionada se a situação educacional voltou ao estágio pré-pandemia: “Não se normalizou, não. Ainda vejo muitos anos de desafio pela frente”, diz.
A escola Sonhém de Cima fica em Sobradinho, região administrativa, a 40 km do centro de Brasília. Atende 170 crianças que são, em geral, de famílias em situação de vulnerabilidade. Até 2019, a diretora tinha sob controle a evolução de todos os alunos na leitura e na escrita. E a pandemia veio como uma avalanche sobre os resultados.
A gente tem percebido visivelmente o impacto que a pandemia teve nessas crianças”, diz Ritter. “Aquelas atividades que levávamos às famílias durante o tempo de escolas fechadas encontraram barreiras porque os pais não têm conhecimento, não são professores.”
Um estudo inédito mostra que as desigualdades de oportunidades educacionais aumentaram nos anos de 2021 e 2022, sobretudo quando se leva em conta a alfabetização de crianças de 7 e 8 anos. O cenário é revelado na pesquisa do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social), a partir do cálculo do chamado Índice de Oportunidades Educacionais.
O instrumento considera a distribuição de determinadas oportunidades (como a conclusão de uma etapa de ensino na idade adequada, a frequência escolar e o acesso a água) por determinadas circunstâncias (como a escolaridade dos pais e o nível socioeconômico). Busca mensurar, assim, impactos que vão além dos esforços individuais. Ao levar em conta a alfabetização de crianças de 7 e 8 anos, o índice de oportunidades caiu de 84% em 2020 para 67% em 2022.
Esse índice atinge seu valor máximo quando a penalidade é zero, o que significa que a cobertura -neste caso, as crianças alfabetizadas- é universal e não há desigualdades nas oportunidades educacionais oferecidas. “Essa métrica proporciona uma avaliação abrangente e sensível das oportunidades educacionais, levando em consideração tanto a extensão da cobertura quanto a equidade entre diferentes grupos”, diz o estudo.
Para medir a alfabetização, o indicador usa os dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, que reflete respostas dos pais sobre se seus filhos sabem ler ou escrever. Os dados do Saeb de 2021, avaliação federal da educação básica, contudo, já mostraram que essa fase foi a maior prejudicada.
Quanto maior a penalidade -que são fatores que influenciam a cobertura de modo diferentes a determinados grupos-, maior a desigualdade. Em 2022, o indicador calculado para a penalidade chegou a 7% para esse grupo. O maior nível em uma série histórica calculada desde 2012, quando era de 5%. No cálculo por estado, chega a 13% em Sergipe e, na outra ponta, a 4% em Santa Catarina.
Quando se analisa a contribuição das características definidas como circunstâncias para a desigualdade observada no índice relacionado à alfabetização, as maiores penalidades têm a ver com escolaridade dos pais (34% de peso) e renda per capita (31%). Cor de pele tem um peso de 4% no Brasil, mas chega a 14% na região Sudeste.
Mais da metade das famílias entre os 20% mais vulneráveis do país têm pais com ensino fundamental incompleto. “Se você sabe que os principais determinantes são escolaridade dos pais e renda familiar, é necessário pensar em políticas integradas”, diz o economista Paulo Tafner, diretor do IMDS.
A quantidade de crianças no domicílio tem um peso de 15% na composição da desigualdade. Na sequência, aparece o tipo de área onde mora, urbana ou rural, com participação de 12%.
Mãe de oito filhos, três deles em idade de pré-escola ou nos anos iniciais do ensino fundamental, Julia Gracielle Santos, 43, mora na zona rural de Sobradinho. Ela, que só estudou até o 7º ano, conta que teve muita dificuldade para ajudar os filhos com as tarefas durante a pandemia.
“A escola é muito boa, não tenho do que reclamar, mas sinto os meninos ainda muito lentos. Eles estão fraquinhos, mas com a ajuda dos professores, e eu também cobro, vão melhorar”, diz ela. “Na pandemia estavam bem pior. Os deveres da escola vinham pra casa, mas a gente não conseguia explicar direito. Com o professor é que ele está desenvolvendo.”
Julia conta que vive de pequenos trabalhos e que o marido trabalha na roça, construindo cercas, currais e afazeres do campo. A renda familiar mensal não chega a dois salários mínimos.
A professora do Insper Laura Machado diz que os dados são graves porque as penalidades, que geram desigualdades, são muito altas na alfabetização, “onde a conversa começa”. Para ela, evidenciam um problema educacional que estoura anos mais tarde.
“Talvez essas crianças não alfabetizadas corretamente vão passando [de ano], cheguem nos anos finais sem aprender e isso começa a pesar. E elas começam a evadir”, diz ela, que é colunista da Folha. “O problema do ensino médio muitas vezes é consequência dessas defasagens.”
Outras duas filhas de Julia Santos pararam de estudar antes de concluir o ensino médio. Mas ela diz esperar que retornem às salas de aula, sonho que ela própria ainda nutre. “Sou chata, não terminei a escola, mas fico no pé. Na hora em que tiver oportunidade, quero terminar meus estudos. Mas para a gente, que é humilde, as coisas são mais difíceis”.
A evolução das oportunidades entre 2012 e 2022 manteve estabilidade no grupo de 11 e 12 anos, quando levado em conta a conclusão dos anos iniciais. A penalidade ficou em 4%, mesmo valor de 2020, mas abaixo dos 7% calculados para 2012.
Ao se analisar a conclusão dos anos finais aos 15 e 16 anos, há aumento no índice de oportunidades ao longo da série histórica. O que também ocorre ao se levar em conta a conclusão do ensino médio para jovens de 18 e 19 anos, embora as taxas sejam menores: passaram de 37% em 2012 para 54% em 2022.
Também nesse grupo, a educação dos pais (42%) e a renda (19%) têm os maiores pesos como variáveis da desigualdade. Cor de pele, por sua vez, alcança seu maior índice, de 9% na média do país. No Sudeste, esse peso chega a 22%.
Desigualdade é maior em aprendizado de matemática no ensino médio
O estudo do IMDS também tem um capítulo em que incorpora os resultados do Saeb. Calcula-se, assim, o índice de oportunidades educacionais no alcance do nível de aprendizagem considerado adequado pelos estudantes do 5º e 9º anos do ensino fundamental e no 3º ano do ensino médio.
A desigualdade cresce com o passar das séries. O pior nível se dá no desempenho de matemática no último ano do ensino médio, disciplina na qual os alunos brasileiros têm os piores resultados.
Enquanto somente 9% alcançam o nível de aprendizado adequado -também calculado no estudo-, o índice de desigualdade é de 42%. O indicador de oportunidade, por sua vez, é de 9%. Por outro lado, ao analisar as médias de língua portuguesa no 5º ano, a desigualdade tem índice de 12%, e a oportunidade, de 61%.
“Os anos de estudo ao longo do tempo aumentaram, a desigualdade em média diminuiu. Com exceção na alfabetização, o que era esperado. Mas a gente não está oferecendo aos nossos alunos qualidade compatível com as necessidades do mundo atual”, diz Tafner, do IMDS.
Para Laura Machado, do Insper, o sistema educacional não tem dado conta de lidar com as desigualdades das famílias. “É um desafio que a educação tem de enfrentar. Quando a criança é filho da pandemia, de família vulnerável ou vítima da seca da Amazônia, é parte inerente da sociedade. Não pode virar o motivo pelo qual não deu certo.”
(Bnews)